Artur A. de Ataíde *
José Eduardo Agualusa amanhã na UFPE
09.11.2009
Hoje pela manhã, no auditório térreo do CFCH, na UFPE, teve início um evento cujo potencial de interesse, sobretudo frente aos recifenses, é difícil de delimitar. Falaram hoje um historiador e um cientista político; amanhã, pela manhã, falam uma especialista em engenharia ambiental, uma arquiteta, um escritor e uma linguista. E a semana segue: arquitetos, gestores públicos, artistas plásticos e pesquisadores de campos variados, que vão da medicina fitoterápica às culturas urbanas contemporâneas. O que isso tudo tem a ver com o Recife: é em função da complexidade intrínseca à identidade cultural da cidade — aliás, de duas cidades — que essa multiplicidade de saberes foi mobilizada. Trata-se do Simpósio Internacional Recife-Luanda: perspectivas para cooperação trilateral Brasil-África-Alemanha, organizado pelo CCBA – Centro Cultural Brasil-Alemanha, e pela UFPE.
No que diz respeito, mais diretamente, à literatura: o escritor presente na programação, que fala amanhã, é o angolano José Eduardo Agualusa, que tem publicados, entre outras coisas, três volumes de contos e oito romances, facilmente encontráveis em nossas livrarias. No site do CCBA há mais informações sobre o escritor, além da programação completa do evento: www.ccba.org.br.
Quanto à questão das relações entre as duas cidades, em lugar de respostas, vão aqui duas perguntas: 1. Qual a razão de ouvirmos, talvez semanalmente, maracatus percorrerem as ruas do Recife Antigo chamando por Luanda? 2. Até que ponto a literatura de Agualusa (que, aliás, já morou em Olinda) nos é, de fato, estrangeira?
("Luanda, Luanda, onde estás?", "Luanda, Luanda, onde estou?", pergunta Ascenso).
Abaixo, segue uma resenha do romance As mulheres do meu pai, publicado por Agualusa em 2007.
Abraços e até lá.
(Artur A. de Ataíde)
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José Eduardo Agualusa no Simpósio Internacional Recife-Luanda: perspectivas para a cooperação trilateral Brasil-África-Alemanha
A presença do escritor José Eduardo Agualusa no Recife, por ocasião do Simpósio Internacional Recife-Luanda, não se justifica meramente por sua origem (o autor, de fato, nasceu em Angola, na cidade de Huambo). Tratar com maior detalhe a questão — o que fazemos a seguir — talvez compreenda a melhor das introduções não apenas à sua obra, mas também ao que vamos encontrar de 9 a 13 de novembro no auditório do CFCH, na UFPE.
As mulheres do meu pai
No romance As mulheres do meu pai, publicado por Agualusa em 2007, vemos o desenrolar simultâneo de duas histórias entrelaçadas. Uma delas é o diário de um escritor que, ao lado de uma documentarista e de um fotógrafo, empreende uma longa viagem de Angola a Moçambique, a fim de colher material para um filme sobre a música africana e sobre a situação das mulheres no sul da África. A viagem foi de fato realizada por Agualusa: ao lado da documentarista inglesa Karen Boswall, radicada em Moçambique, e do fotógrafo catalão Jordi Burch. A segunda história compreende a saga de uma documentarista portuguesa, Laurentina, no encalço de um homem recém-falecido, o músico jazzista Faustino Manso, de Angola, que, além de tocar contrabaixo como poucos, conta em sua biografia com uma circunstância peculiar: a de haver constituído família com sete mulheres diferentes, distribuídas ao longo da costa africana — de Angola a Moçambique —, deixando-lhes, ao todo, dezoito filhos, além de alguma saudade. Laurentina descobrira há pouco ter sido Faustino o seu verdadeiro pai, de modo que sua viagem pela África é também uma busca por si mesma, por suas origens.
Esses, que seriam os dois núcleos do romance, vale dizer, deixam-se enriquecer ainda por uma série de ingredientes adicionais, que não poderiam passar sem referência. Enquanto segue a leitura, por exemplo, somos frequentemente surpreendidos com a conversão flagrante, desinibida, de experiências "reais" da viagem de Agualusa em elementos-chave da viagem "ficcional" de Laurentina, gerando uma espécie prazerosa de déjà vu narrativo. Há ainda o registro impressivo de lugares e paisagens as mais díspares, desde o centro vivamente caótico de Luanda ao abandono incandescente de Wlotzkas Baken, incluído com o intuito de, quem sabe, suprir o desejo do narrador por "guias de viagem que fossem, simplesmente, colectâneas de poesia"; há as discussões sobre civilização, comunismo, mestiçagem, racismo e apartheid; há a coleção de fragmentos de entrevista, textos de catálogo ou simples comentários acerca de músicos, fotógrafos e poetas, sejam eles angolanos, moçambicanos ou sul-africanos, que se entremeia à narrativa — sua presença é o indício de que Agualusa terá dado ouvidos ao que diz Seretha du Toit à "construtora de memórias" Laurentina: "não é possível construir um país sem investir na memória"; e há, finalmente, o gosto indisfarçável pelo puro contar histórias, pelo enredar de tramas que vão dos crimes de guerra ao desencontro amoroso, envolvendo personagens as mais heterogêneas e imprevistas.
Diante de todo esse emaranhado, no entanto, é apenas um pormenor especial o que nos interessa agora. Pormenor típico de um fabulista: aquele que pensa e faz pensar por meio de histórias. É aí que voltamos a nosso ponto inicial.
O caso é que, antes mesmo de vermos Laurentina ser recebida alegremente, como uma parenta distante, mas já esperada, no funeral de Faustino, a acontecer na casa de Anacleta — primeira mulher do músico e última parada sua, depois de seu périplo africano; antes mesmo de a vermos se reconhecer entre seus novos irmãos e sobrinhos, que tinham já uma vaga notícia dessa outra filha Laurentina, Agualusa já nos acena com uma perspectiva intrigante: a hipótese de o músico Faustino Manso ter sido estéril.
O pormenor, salvo engano, traz implicações maiores que a mera complicação novelesca. Os laços que tão afetuosamente ligam Laurentina à família Manso, e que fazem desta uma família, longe de serem laços de sangue, podem não passar de laços, digamos, ficcionais: sete mulheres e dezoito filhos ligados pelos poderes do conto, pelos poderes de uma memória que mistura fato e fábula. A esterilidade biológica de Faustino, desse modo, não é nada ante a fecundidade simbólica de sua figura: o novelo de invenções — a própria família Manso — que fez Laurentina correr a África, a esta altura, já é parte inalienável de sua experiência de vida, já a constitui. É semelhante ao que acontece à estranha coleção de insetos de Mauro, um italiano que mantém uma pousada na Ilha de Moçambique. Mauro tem por hobby instalar mecanismos em besouros mortos, que voltam a bater asas como seres híbridos, mistos de natureza originária e invenção incorporada.
Com o pormenor, enfim, o ciclo se completa: assim como vimos o real alimentar a ficção, vemos agora a ficção fundar o real.
"O teu pai é uma invenção", diz Bartolomeu a Laurentina: se a frase não se aplica apenas à personagem e a seu destino particular, mas também pode nos servir de parâmetro em qualquer discussão sobre origem e identidade, o que ela nos diz é que há algo muito mais importante a esse respeito do que nossa árvore genealógica. Esse algo é aquilo que inventamos quando estamos juntos: cultura. Uma identidade não se compõe de meros atavismos estanques, mas de um movimento incessante, sempre vivo, de recriação. Com essa visão de identidade cultural, típica de "nações crioulas", é que as perspectivas de cooperação do Simpósio ganham sentido pleno: é de culturas que se reconhecem em pleno trânsito que estamos falando, e de diálogos que semeiem possibilidades reais de movimentação.
O caos efervescente da Luanda de Agualusa, a confusão de línguas e culturas da Berlin atual e a abertura do Recife para o oceano: essas são as três imagens inspiradoras, móveis, que esperamos ver em diálogo no Simpósio; três identidades divididas, como a de Laurentina, entre a origem e a invenção.
Portas de entrada
Toda cidade excede, em muito, o seu território, a sua geografia, a matéria aparentemente intransitiva dos seus edifícios, do semáforo, das calçadas em ruína. Na mudez desses objetos, esconde-se uma espécie de coro: acompanhando-o em harmonia inconsciente, raras vezes nos damos conta dele, mas um arquiteto historiador, por exemplo, ou simplesmente um estrangeiro, irá lhe distinguir não só as vozes e modulações sutis, mas também o complexo sinfônico de que é parte, junto ao nosso modo de caminhar, de gerir a coisa pública ou de tratar o outro num ônibus. A cidade, visível e invisível, vai da vegetação típica aos desejos e traumas de quem nela vive, vai do revestimento dos edifícios ao ritmo dos gestos numa praça de subúrbio: vai de uma ponta à outra, enfim, do espectro confuso de que se faz uma cultura. Aí, pois, estão as nossas portas de entrada: as cidades do Recife e de Luanda em diálogo, através do olhar de historiadores, cientistas políticos, arquitetos, gestores públicos, escritores e artistas.
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* Artur A. de Ataíde é doutorando em Teoria da Literatura. Esta resenha se encontra no blog da Revista Crispim.
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